sábado, 25 de abril de 2009

Caminho


As minhas mãos estão quentes
meus pés estão sujos de lama
A lágrima eclode nos dentes
versinhos de porcelana

Um sopro verde aos ouvidos
calmo e volumoso como grama
Novembro tem cheiro de chuva
Dezembro tem gosto de manga

Esfera macia e morna
O ventre, a decomposição
A árvore, nuvem frondosa
desponta rebentos no chão

O frescor amarelo das formas
enche as rosas de ilusão
Umas já formam balaio
Outras rebrotam botão.

Onze filhos

Onze filhos eu teria para devotar-lhes
o meu amor inativo
e minha maternidade cabisbaixa.
Me orgulharia dos meus onze filhos.
Todo o meu trabalho inventivo
permaneceria para dentro dos ouvidos.
Minha dor ficaria ignorada
- bisturi esquecido na cesária.
Todo amor apaziguado
nas roupas sujas dos meus onze filhos.
As toalhas brancas, as contas de luz,
os panos de prato, as calças vincadas.
Toda fé ficaria investida
nos domingos e festas de guarda.
Todos os sonhos contidos
nos brinquedos quebrados
nos documentos perdidos,
nos rosários, nas anáguas.
Toda mágoa diluída
no leite dos meus onze filhos.

Desespero

Caminhava muito
e caminhava a esmo
e caminho ainda
e ando e fujo
sem me lembrar por quê
(não sabia mesmo)

Passo por viadutos
atravesso curvas
muitas curvas
e já me esqueço
para onde
para onde

Eu ando e como luz
com os olhos
quando estou triste
– por isso nublava
por isso fazia escuro

Me sentia confortável
andando no escuro
Não sabia
e não sabia mesmo
Era bom
Vejo os ônibus
Eles passam sempre ao lado
Não há mais ninguém
exceto eu mesma
atrás de mim

É do que me lembro
de quando pergunto
de quando me lembro
de olhar para trás

De olhar para trás
via a mesma paisagem
que me acompanhava:
um eu que andava
e andava
e olhava pra mim
por cima do ombro direito

Caminhava a esmo
e caminho ainda
só sei que fujo
nem sei do quê
nem sei pra onde
nem sei por quê.

I bike 2


Decanto as poças de chuva
nos pneus da bicicleta
e o mormaço me sobe nas pernas
e a frescura me expande as narinas

Uns dizem que isso dá gripe
A mim me dá alegria
quando muito, melancolia
de quem atravessa a existência
pela grande boca da História
com a tácita incumbência
de erguer o peso dos dias
com todo incômodo trágico
da Essência.
Com todo sofrer (ridículo)
de poeta
de saber-se inútil
e inútil ficar
– um Prometeu sem grilhões,
que enquanto anda de bicicleta
não nota
que é só alguém que anda no mundo
e pensa
que o mundo é que gira sob suas pernas

A melancolia é rica
– um passo atrás do desespero
A alegria vai-se
a gripe passa
e eu
continuo a andar de bicicleta.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Banho-maria



Os ecos gramofônicos
de sua voz sob o chuveiro
vão encontrar Pasárgada
em um longo fevereiro.

Os restos burocráticos do dia,
sob o chuveiro,
derreterão como gotas de limão
no tempo de um beijo.

Sempre um pouco de ti
– cheiro, sapatos, cabelo –
vai deixando rasto pela casa
e pelo mundo inteiro.

E o mundo fica a lembrar de ti,
absorto, alheio a si,
enquanto você sonha indiferente
sob o chuveiro.