quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Retrato


A avó balbucia
memórias ocultas
sob a língua dos velhos:
o mistério dos anjos que dão conforto
a quem vive muitos anos.
Ela conta os botões da roupa
com as pontas dos dedos e
desliza a pele solta
sobre os metacarpos.
Suspira sem dor,
invoca aos céus por hábito,
espanta um gato.
A cada dia revive
- a alma em estado de paisagem intermitente.
Não é preciso dentes ou garfo.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Quixotesco

Sobre a grama espessa
os castelos
migram e pousam sempre
mais adiante
Quem os persegue?
Um quixote?
Um templário?
Pergunto ao Lunário Perpétuo
pra onde vão os castelos
poemas palmilhando cadernos.
Ali e adiante,
imolar outro verso,
perseguir o horizonte,
o reflexo.
Onde os castelos?

domingo, 5 de dezembro de 2010

A chuva cobre as coisas de ruído


A chuva cobre as coisas de ruído
rompe o pó e dissolve as pegadas.
Todos os rastos e restos
vão-se com seu horror e seu tédio
empoçar outros olhos
entupir calhas mais além.
Por ora tudo se lava
em reflexo e ruído
e lama.
Cada ruído destila o próprio eco
abafando o som de cem mil gemidos
no tamborilar de um só lânguido chiado:
A chuva
cerra as janelas do mundo
e mofa suavemente as roupas.
A chuva sussurra o sono.
A chuva redime a memória.
A chuva
trouxe o sol.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Pessach

A noite passou sobre as flores e os carros sua língua fresca
As janelas e as sarjetas todas espreitam
os muros ecoam o ruído inaudível da luz
e o asfalto insone espera.
As camas desfeitas, os sapatos e a pia celebram
a fagulha acendendo as retinas das coisas
o pó e o planeta se apercebem de si
cada instante em que o sol os toca.
O Amor é tão grande
que também os mortos e os óvulos rejubilam
enquanto o orvalho seca.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Antes

Quanta dor pode vir
da flor de plástico,
do tempero moderado,
dos legumes a vapor.

Temo a cor crua,
o bom-dia involuntário
Temo a moça nua no espelho
com os olhos quebrados
a boca prevendo o bocejo.

A terra por dentro viceja
coberta de pó e pedra
o verso monocorde
reverbera:
mariposa imóvel no quarto.

sábado, 25 de abril de 2009

Caminho


As minhas mãos estão quentes
meus pés estão sujos de lama
A lágrima eclode nos dentes
versinhos de porcelana

Um sopro verde aos ouvidos
calmo e volumoso como grama
Novembro tem cheiro de chuva
Dezembro tem gosto de manga

Esfera macia e morna
O ventre, a decomposição
A árvore, nuvem frondosa
desponta rebentos no chão

O frescor amarelo das formas
enche as rosas de ilusão
Umas já formam balaio
Outras rebrotam botão.

Onze filhos

Onze filhos eu teria para devotar-lhes
o meu amor inativo
e minha maternidade cabisbaixa.
Me orgulharia dos meus onze filhos.
Todo o meu trabalho inventivo
permaneceria para dentro dos ouvidos.
Minha dor ficaria ignorada
- bisturi esquecido na cesária.
Todo amor apaziguado
nas roupas sujas dos meus onze filhos.
As toalhas brancas, as contas de luz,
os panos de prato, as calças vincadas.
Toda fé ficaria investida
nos domingos e festas de guarda.
Todos os sonhos contidos
nos brinquedos quebrados
nos documentos perdidos,
nos rosários, nas anáguas.
Toda mágoa diluída
no leite dos meus onze filhos.