terça-feira, 31 de março de 2009
Menina sem dedo
Uma planta perdeu muita água porque não chovia.
Uma menina perdeu um dedo;
chovia, contudo.
A planta perdeu algumas folhas, sofria.
A menina já não sofria muito,
todavia faltasse um pedaço.
As duas se olharam no parque, e havia
um desespero calado.
Choveram na planta, um dia
e voltaram a crescer seus braços.
A menina sem dedo,
sem dedo aprendia,
escrevia com outro lado.
Brincava de balanço, sorria,
mas faltava sempre um pedaço.
E a planta morreu, um dia.
Atrás das retinas do teu retrato
Atrás das retinas do teu retrato:
Teus sonhos opacos e extratos bancários
Tua gasolina, teu ócio arbitrário
Teus exames médicos, teu vocabulário
Os teus fluidos, teus copos, teus pratos
Teu sono fácil, teus documentários
Teu cheiro ambíguo e teu calendário.
Atrás da superfície de teu contato:
As tuas vésperas e teus colapsos,
Os teus detergentes e teus formulários
Os teus gostos e teus gastos
Teu nome, teu nome, silêncio binário.
Míope
Ninguém mais enxerga
os babados de uma roupa
tão de perto
ou o fino pó brilhante
incrustado numa pétala de flor
Não enxergo bem uma árvore
assim tão grande
mas te mostro
as nervuras de cada folha
Não se enxerga
um restículo de sabão num copo limpo
porque todos enxergam
muito bem de longe
Eu posso não ver bem
os rostos passando
mas ainda posso vislumbrar
os fractais de uma retina
Eu não enxergo bem
o que escrevo
mas sei exatamente
a textura da tinta
Eu mal consigo ver pela janela
pois não é isso o que sinto pelo mundo
É um Monet com Van Gogh que eu não entendo
Poderia cortar as orelhas e ficar mudo.
Vestígio de gente
Um passarinhar contente
Um mormaço flácido
de chuva antes do poente
Um frescor quase quente
de pastilha que refresca o hálito
Surpresas olfativas de fim de tarde
e conversas distantes
e música antiga
evocando perdidas
perdidas
lembranças de cadeiras nas calçadas
e das redes içadas, perenes
Vestígios de gente
sem gente haver
Como a cama que abrigou o sexo
desarrumadamente
esfuma também um crepúsculo ralo:
um mormaço flácido de chuva
antes do poente.
Um mormaço flácido
de chuva antes do poente
Um frescor quase quente
de pastilha que refresca o hálito
Surpresas olfativas de fim de tarde
e conversas distantes
e música antiga
evocando perdidas
perdidas
lembranças de cadeiras nas calçadas
e das redes içadas, perenes
Vestígios de gente
sem gente haver
Como a cama que abrigou o sexo
desarrumadamente
esfuma também um crepúsculo ralo:
um mormaço flácido de chuva
antes do poente.
domingo, 29 de março de 2009
Memória futura
"Havia pombos que arrulhavam em redor de Josefina
e libélulas que valsavam com seus vestidos de gaze
e seus adereços de ametista."
Cecília Meireles
Eu fico penteando-me com muita força
para que não me fujam as borboletas.
Se o vento cheirasse a amêndoas amargas
eu amava um estranho com muita ânsia.
É necessário o feno e é necessário o trigo.
É perigoso o instante
cru, desabrido
para os que não são pobres de coração.
Lépido é o dia alaranjado e morno como as libélulas
e suas larvas voracíssimas.
A vida me agrada
por não ter eu visto muito
e ainda sentido tanto.
Cnidária
Quero ser seda colorida
dançando debaixo d'água.
Cnidária.
Ser pano de pára-quedas
sem parar nada
pairando no topo do mundo
Não ser o olho atrás da janela
olhando a paisagem
nem ser a paisagem,
que há de caber na tela,
no poema.
Quero ser plena:
musgo sobre a pedra,
que não se dá a contemplar
e que não enxerga.
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